O real, o ideal e o ilusório
Não pretendo realizar aqui um balanço acabado da COP-8 e seus resultados imediatos. O que me parece mais interessante é fazer algumas observações acerca da divisão que atualmente segmenta em três mundos o universo das discussões multilaterais sobre biodiversidade: um mundo ideal, um mundo ilusório e o mundo real.
Maurício Thuswohl
Encerrada no último dia de março, em Curitiba, a 8ª Conferência das Partes (COP-8) da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU (CDB) divide opiniões quanto ao seu resultado. Os que enxergam sucesso na Conferência apontam como principal vitória o fato de que a agenda multilateral de proteção à biodiversidade, que há anos estava paralisada, tenha sido finalmente desbloqueada com a adoção de prazos e documentos concretos para a implementação prática dos postulados da CDB. Os que avaliam a COP-8 como um fracasso reclamam da frouxidão dos prazos (a aplicação definitiva de algumas decisões foi jogada para 2010 ou 2012), da supremacia dos interesses das empresas transnacionais sobre os interesses dos governos e povos em muitas negociações e da falta de medidas imediatas para frear crimes contra a biodiversidade que hoje em dia são amplamente cometidos, como a biopirataria, a exploração marinha predatória e a extração ilegal de madeira, entre outros.
Ambas as avaliações estão corretas, acredito. A COP-8 teve sucesso, de fato, ao fazer avançar a discussão - ou, ao menos, ao evitar retrocessos - em alguns pontos-chave da CDB, como a identificação dos carregamentos contendo transgênicos, a extensão da moratória às práticas de campo com sementes suicidas (Terminator) e a adoção de um regime internacional de acesso aos recursos genéticos derivados dos conhecimentos tradicionais e repartição dos benefícios econômicos e não-econômicos a eles associados. Também é verdade, no entanto, que a COP-8 deixa um gosto de fracasso por ter tornado clara a falta de disposição política dos países mais ricos em colocar já a mão na massa em defesa da biodiversidade, num perigoso exercício de “dar tempo ao tempo”, além de ter demonstrado que as decisões tomadas no âmbito da CDB continuam padecendo de uma fragilidade comovente frente às chamadas “decisões do mercado” e deliberações de outros fóruns levados mais a sério pelas elites, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outros.
Não pretendo, portanto, realizar aqui um balanço acabado da COP-8 e seus resultados imediatos. Aconselho ao leitor que queira saber mais detalhes sobre as decisões da Convenção que dê uma olhada nas muitas matérias que compõem a página especial produzida pela CARTA MAIOR. Enveredando por outro caminho de análise, me parece mais interessante neste momento fazer algumas observações acerca da divisão que atualmente segmenta em três mundos o universo das discussões multilaterais sobre biodiversidade: um mundo ideal, um mundo ilusório e o mundo real.
O mundo ideal é aquele sugerido nas reivindicações das ONGs e movimentos socioambientalistas, que apontam para o cumprimento das metas de proteção da biodiversidade estipuladas na Rio-92 e reafirmadas uma década depois na Rio+10 (Johanesburgo, África do Sul). Seus habitantes indicam um início de caminho para que se reduza a acelerada perda de espécies e se evite o colapso da vida no planeta. Os habitantes do mundo ideal têm consciência de que não estão vivendo no mundo real e por isso querem dominá-lo, mas sua força é restrita.
O mundo ilusório é habitado por governos e diplomatas, que celebram acordos globais e anunciam ações - como a criação de parques ambientais e reservas ecológicas ou a implementação de programas em defesa da biodiversidade - que na maioria das vezes não saem do papel. No mundo ilusório, a inversão do quadro de perda planetária da biodiversidade parece questão de (pouco) tempo. Vítimas de ilusão, em alguns casos consentida, os habitantes deste mundo têm o estranho hábito de acreditarem estar vivendo no mundo real, apesar dos insistentes alertas em contrário.
O mundo real é regido pelo Deus-Mercado, onde prevalecem os acordos comerciais e os interesses de seus mais poderosos habitantes: as gananciosas empresas transnacionais dos setores da agroindústria e da biotecnologia. No mundo real, a matança de espécies (inclusive a humana), o desmatamento das florestas, a biopirataria dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e a contaminação genética e alimentar correm soltos. Neste mundo também vivem as pessoas, de carne e osso, que não cessam de serem roubadas, adoecer ou morrer por conta das agressões sofridas.
O mundo ideal, mais do que um horizonte a ser alcançado, funciona como uma ponte entre os outros dois mundos. Canal de expressão das populações que mais sentem na pele o impacto da destruição acelerada da biodiversidade (indígenas, comunidades locais, pequenos agricultores, etc), as ONGs e movimentos socioambientalistas são porta-vozes dos relatos de degradação ambiental e atuam para pressionar os demais atores no sentido do cumprimento das metas da CDB. Sua relação com os habitantes do mundo ilusório é complexa, variando do embate direto contra os governos menos propensos a se preocupar com a biodiversidade (Canadá, Austrália, Nova Zelândia, entre outros) à “colaboração crítica” com os governos aparentemente mais progressistas (Brasil e Venezuela, entre outros). Em ambos os casos, essa relação pode ser às vezes influenciada por questões de financiamento direto ou indireto para as organizações e movimentos sociais.
A interação das ONGs com os habitantes do mundo real não se limita às populações atingidas. Ela se dá também com as empresas, num caminho que muitas vezes se revela perigoso. Nessa relação, encontram-se várias organizações “do mal”, que têm atuação socioambiental de fachada e, na verdade, agem ora como capatazes das populações mais vulneráveis, ora para dar “respaldo científico” à busca desenfreada das empresas pelo lucro. Encontram-se ainda outras organizações que, sócias de uma visão conservacionista da biodiversidade, engrossam projetos que envolvem a privatização de grandes áreas e, em alguns casos, o deslocamento forçado de populações. Essas relações de mão-dupla (às vezes de contramão), tanto com o mundo real das empresas e pessoas quanto com o mundo ilusório dos governos, podem eventualmente embaralhar o passo dos arautos do mundo ideal. Talvez isso explique porque a avaliação de algumas das principais entidades do movimento socioambientalista sobre a COP-8 tenha variado do encorajador “recolocamos o trem nos trilhos” ao alarmante “a CDB é um navio no meio do oceano, sem capitão”.
Nem trem nos trilhos nem nau sem rumo, os habitantes governistas do mundo ilusório, por sua vez, talvez se assemelhem mais a tripulantes de um atemporal submarino amarelo, felizes em sua rota psicodélica que pouco contato almeja fazer com a superfície e as agruras do mundo real. Em meio a planos, projetos e protocolos, os habitantes do mundo ilusório se dividem, ao que parece, entre os que acreditam no que estão dizendo e fazendo e os que atuam deliberadamente para retardar o processo de discussão e renovar continuamente o efeito do soma que joga a CDB e seus signatários num doce e confortável torpor. Sua relação com o mundo real muitas vezes é cruel, reservando proteção e obediência ao Deus-Mercado e às empresas transnacionais e espalhando desprezo e repressão política e policial às populações atingidas e seres humanos em geral.
Os habitantes do mundo real, justamente por ali viverem, sabem exatamente onde querem chegar. As pessoas diretamente atingidas pela perda da biodiversidade ou pelas ações que atentam contra a biossegurança lutam pela própria vida, e não existe luta mais objetiva do que essa. Para garantir seu direito à sobrevivência, no entanto, têm que combater os outros habitantes do mundo real: as empresas. Essas sabem melhor do que ninguém onde querem chegar e seguem diuturnamente seu trabalho em busca do lucro e da monopolização do mercado nos setores agro-alimentar e de biotecnologia. A prática dessas empresas às vezes resvala na atividade criminosa e às vezes é uma atividade criminosa de fato, traduzida no roubo do patrimônio genético das populações tradicionais, no contrabando de sementes transgênicas ou na contaminação ilegal de campos e lavouras (só para ficar nas ações mais corriqueiras nos últimos anos).
Fico angustiado com a constatação de que, no universo das discussões sobre biodiversidade, os mundos real, ideal e ilusório convivem sem indicar nenhum risco próximo de colisão. Com o passar do tempo, essa “estabilidade” torna-se cada vez mais perigosa, pois a incapacidade de atuar na realidade pode fazer com que o mundo das ONGs e movimentos, assim como o mundo dos governos e diplomatas, acabe desaparecendo nas brumas, sobrevivendo apenas como relato mitológico. O mundo das empresas, por ser real, é o único que avança objetivamente para uma conclusão também real. O grande problema é que essa conclusão, ao que tudo indica, vai fazer o Deus-Mercado reinar sobre um mundo biologicamente exaurido e carente de mulheres, homens, plantas e animais.
Maurício Thuswohl é editor de Meio Ambiente e correspondente da Carta Maior no Rio de Janeiro.
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