Governos destravam agenda multilateral pela biodiversidade
Encerrada na madrugada de sábado, COP-8 destravou uma agenda que já se encontrava imóvel há alguns anos e reacendeu a esperança na implementação de ações multilaterais capazes de deter a perda de biodiversidade no planeta.
Maurício Thuswohl – Carta Maior
CURITIBA – Foram trinta resoluções acerca de políticas públicas internacionais para proteger a biodiversidade. Duas semanas de discussões que envolveram mais de quatro mil delegados vindos de todos os cantos do mundo, entre eles 122 ministros ou vice-ministros do Meio Ambiente. Para algumas organizações da sociedade civil, foi um fracasso. Para a maioria dos representantes de governo, um avanço histórico. O fato é que a 8ª Conferência das Partes (COP-8) da Convenção Sobre Diversidade Biológica da ONU (CDB), encerrada na madrugada de sábado (1) em Curitiba, foi o maior debate já realizado pela humanidade desde que o tema surgiu pela primeira vez, durante a Eco-92 realizada no Rio de Janeiro. Se os avanços serão concretos, só o tempo dirá, mas o inegável é que a COP-8 destravou uma agenda que já se encontrava imóvel há alguns anos e reacendeu a esperança na implementação de ações multilaterais capazes de deter a perda de biodiversidade no planeta.
Considerado, ao lado da discussão sobre as sementes Terminator, como um dos temas quentes da COP-8, o debate sobre a adoção de um regime internacional que defina regras para o acesso aos recursos genéticos derivados dos conhecimentos tradicionais e para a repartição dos benefícios econômicos e não-econômicos a eles associados foi desbloqueado somente no último dia da conferência. Os governos decidiram adotar o texto redigido em Granada (Espanha), durante uma reunião preparatória à COP-8 realizada em janeiro, como documento guia rumo à adoção definitiva do regime internacional. O “avanço” conseguido nesse ponto, na realidade, foi evitar um retrocesso, uma vez que, no início da COP-8, a maioria dos países ricos defendia que se abandonasse o texto de Granada e que um documento guia só começasse a ser discutido daqui a dois anos, na COP-9 que acontecerá na Alemanha.
Ficou decidido que o Grupo de Trabalho sobre o regime internacional de acesso e repartição fará duas reuniões antes da COP-9, de maneira a sistematizar a discussão e evitar que na Alemanha se repita o ocorrido em Curitiba, onde alguns países tentaram voltar atrás no debate. Para evitar manipulações, também foi decidido que o GT passará a ter dois presidentes, “um de um país desenvolvido e um de um país em desenvolvimento”. A principal polêmica continua sendo o caráter do regime. Os países mais pobres, que também são os maiores detentores de biodiversidade, querem que ele seja adotado sob a forma de protocolo vinculante - que estabelece obrigações e sanções aos signatários - e os mais ricos querem evitar esse compromisso. Os governos marcaram a adoção definitiva do regime internacional para a COP-10, que será realizada em 2010, ano em que também termina o prazo estipulado pela ONU para a implementação das diretrizes da CDB.
Outra medida prática nascida em Curitiba foi a criação de um grupo composto por 25 especialistas e sete observadores que irão elaborar até a COP-9 uma proposta para a criação de um certificado internacional de origem e procedência legal relacionado aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. A idéia é que esse certificado seja emitido pelo país de origem e garanta o respeito às respectivas legislações nacionais: “A criação do certificado de origem será o primeiro grande passo para a adoção do regime internacional”, avalia o argelino Ahmed Djoghlaf, secretário-executivo da CDB.
A ministra brasileira Marina Silva, que presidirá a CDB pelos próximos dois anos, afirmou que a COP-8 “avançou significativamente” no sentido da adoção de um regime internacional de acesso e repartição: “Antes, tínhamos diferenças que pareciam inconciliáveis e agora temos um texto de referência e um prazo indicando que o processo deve ser finalizado em 2010. Conseguimos uma proposta de consenso, com uma data limite e com o reconhecimento de que a não-existência desse regime é um prejuízo para implementação das metas da CDB”, disse.
RECURSOS FINANCEIROS
Marina afirmou que o governo brasileiro pretende aproveitar seu período na presidência da Convenção para dar seqüência aos resultados obtidos em Curitiba: “Teremos amplas discussões nesses dois anos em que o Brasil estará na presidência da CDB”, disse a ministra. A principal tarefa colocada para Marina é obter os recursos financeiros sem os quais a maior parte das resoluções da CDB permanecerá como letra morta: “O Brasil vai trabalhar com afinco nos próximos dois anos para buscar os recursos que nos permitam implementar o que foi decidido aqui em Curitiba. Vamos realizar um esforço de gestão para que os países que alimentam o GEF (Fundo Global para o Meio Ambiente, na sigla em inglês) cumpram seus compromissos”, disse.
Sobre a questão financeira, Ahmed Djoghlaf se mostrou otimista: “O GEF estará disponibilizando US$ 1 bilhão durante o período em que o Brasil presidirá a CDB”, disse. O secretário-executivo, que está deixando o cargo este ano para assumir a direção do Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), afirmou que a posição de liderança assumida pelo Brasil deve fazer com que ainda mais recursos cheguem para a implementação das diretrizes da Convenção: “O tema da biodiversidade foi colocado com muita coragem pelo presidente Lula no encontro recente com o primeiro-ministro britânico Tony Blair. Agora, a biodiversidade está na pauta do G-8 (grupo que reúne os oito países mais industrializados) e tenho certeza que os países mais ricos vão reafirmar seu compromisso com a CDB”, disse.
OUTRAS RESOLUÇÕES
Além da adoção do regime internacional de acesso e repartição de benefícios, o outro tema quente da COP-8 também teve um encaminhamento que pode ser considerado positivo. Foi mantida a moratória para a comercialização e os testes de campo das Técnicas Genéticas de Restrição de Uso (GURTs, na sigla em inglês), também conhecidas como sementes Terminator. A polêmica questão das árvores transgênicas, colocada “de surpresa” na pauta da COP-8 pelas empresas interessadas em sua exploração comercial, teve sua discussão adiada par a COP-9. Em relação aos transgênicos, uma outra vitória já havia sido obtida no 3º Encontro das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP-3), realizado antes da COP-8, quando ficou decidida a adoção da expressão “contém OVMs (Organismos Vivos Geneticamente Modificados)” para identificar os carregamentos contendo transgênicos.
Outros temas que despertaram menos paixão, mas que são igualmente importantes, também foram encaminhados pela COP-8. Entre eles, destaque para a adoção de um plano internacional para combater espécies exóticas invasoras: “É um problema mundial, que ameaça a biodiversidade em muitos países. No Brasil, onde um levantamento revelou a presença de 553 espécies exóticas invasoras, temos casos de danos sérios à cadeia alimentar, como o causado pelo mexilhão dourado”, afirmou o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco.
Outro decisão importante foi acelerar o processo de classificação da biodiversidade através de um programa intitulado Iniciativa Global de Taxonomia: “Nesse caso, o importante é conseguir recursos que permitam de fato uma classificação global das espécies. Nós sabemos que a maioria dos países em desenvolvimento tem dificuldades para realizar esse imenso trabalho”, disse Capobianco. Entre os pontos importantes que não lograram avanço prático na COP-8 estão a criação de uma rede global de áreas protegidas, o fortalecimento dos mecanismos de participação dos povos indígenas e tradicionais nas discussões sobre o regime internacional de acesso e repartição, a adoção de regras para proteger a biodiversidade marinha em águas internacionais e a adoção de uma moratória para a pesca de arrasto.
Para saber mais sobre as decisões citadas acima e sobre outros temas tratados em Curitiba, leia a cobertura especial da COP-8 e da MOP-3 realizada pela CARTA MAIOR.
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