Um morto-vivo pelo cansaço
1/4/2006 da Redação.
Só pode ser isso, Reinaldo José Lopes repórter de ciência enviado pela Folha à Curitiba, termina a maratona de discussões da COP vencido pelo cansaço. Muito cansado, consegue escrever um texto dedicado à ciência tentando fazer comédia em cima de drama.
Na matéria de hoje, Lopez introduz o termo "Sarumanismo" - retirado de um personagem de J. R. Tolkien - para qualificar o evento da ONU, coloca sem explicar a piada, de como a ONU serviria de palco para uma encenação do grupo Monty Python e taxa , de vez, a Convenção sobre Diversidade Biológica como impraticável ao afirmar: "A situação é mero sintoma do problema maior que é a CBD, um amontoado de boas intenções sem coordenação interna, financiamento adequado ou, o que é mais importante, poder de fato para implementar suas decisões".
Lendo isso a gente pensa que a CDB não é de nada, a presidente da COP e ministra Marina Silva uma galinha choca, os demais representantes de estado uns pintinhos feios e a ONU um galinheiro, ops, picadeiro.
Não, segundo Lopes, o espetáculo fica por conta das organizações civis: "Dito desse jeito, parece que a culpa é só da CDB e da ONU. Não é. Também está sobre as cabeças de boa parte das ONGs que encheram o evento de Curitiba com protestos barulhentos, alimentando a velha paranóia em relação aos transgênicos (até onde se sabe, injustificada, pelo menos por enquanto) e desviando energia do essencial" .
Na continuação deste parágrafo, Lopes argumenta que o circo das ONGs é a forma do secretário-geral, Ahmed Djoghlaf, estrear sua atuação sem chamar muita atenção: "Enquanto elas cerravam fileiras contra o tigre de papel das 'sementes suicidas' Terminator, a farsa continuava. Ahmed Djoghlaf, o recém-empossado secretário-geral da CBD, repetia o tempo todo que a convenção havia "voltado para casa [nasceu na Eco-92, no Rio] para ganhar vida nova".
O cansado do Lopes não lembrou que a Eco 92 e a Rio 92 foram dois eventos distintos, realizados em conjunto, para dar voz ao maior número de habitantes deste planeta. Logo, não há nada de novo, muito menos absurdo, com a ocorrência de dois eventos paralelos na Convenção, um da sociedade civil e outro da ONU.
Realmente é cansativo ouvir tamanhas discussões entre países potentes e impotentes, com voz e sem voz. Imagine então ouvir as vozes das comunidades, as vozes indígenas, as vozes camponesas... Lopes preferiu ficar surdo a elas e considerar as demandas das ONGs apenas como uma paranóia injustificada para barrar tecnologias, contradizendo-se no mesmo artigo onde coloca: "Enquanto a ciência diz há pelo menos 15 anos que a Terra está entrando numa fase de extinções em massa causadas pela mão humana, os delegados acham que mais estudos são necessários. Atiram pela janela o princípio da precaução, segundo o qual ninguém precisa de todas as informações do mundo para agir contra uma catástrofe."
O microfone das ONGs deveria estar desligado para Lopes, pois lá o que as ONGs diziam em relação às sementes transgênicas, não parecia ser diferente.
Como repórter de ciência, Lopes deveria lembrar disso, com ou sem ONGs, gritando ou em silêncio. Como ser humano, mesmo tão cansado, não dava para não ouvir os protestos de milhares de pessoas presentes ao encontro que já estão sendo prejudicadas pelo uso das novas tecnologias no mundo. Denominadas tecnologias da vida, e que são o novo meio de concentração de renda e exclusão dos direitos da vida, e nesse caso da vida humana inclusive.
É mais fácil tentar desligar as vozes que entoam a responsabilidade de todos, minar os poucos mecanismos de colaboração que existem entre países (como a CDB é) e ver o globo terrestre afundando, com a comodidade de achar que 'a responsabilidade não é sua', 'ninguém poderá nos defender' e 'nada há para ser feito'. Mas é só depois que conseguirem calar o último suspiro, e aí ambientalistas podem contar com outros seres vivos, é que repórteres como Lopes irão poder falar o que quiserem, sem a menor responsabilidade.
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Abaixo o artigo de Lopes:
Convenção é um morto-vivo sem poder nem rumo
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Aconteceu no segundo dia de COP-8, mas podia ter sido em qualquer um. Os delegados que integravam o Grupo de Trabalho 2 elogiavam o "sorriso auspicioso" no rosto do presidente do grupo, Sem Shikongo, da Namíbia. Um conterrâneo sugeriu que o bom humor se devia ao fato de que os namibianos comemoravam 16 anos de independência naquele dia. Shikongo, porém, emendou logo: "Eles estão lá se divertindo e tomando cerveja, e nós aqui trabalhando".
Foi assim, como quem estava ali só de corpo presente, que se comportaram muitos dos representantes dos governos do mundo ao longo da conferência. A situação seria menos vergonhosa se ficasse restrita a esse humor capenga, na linha "a ONU segundo Monty Python", mas quem acompanhou as batalhas intermináveis em torno de uma vírgula sabe que foi muito pior que isso.
A COP-8 marca o triunfo do sarumanismo dentro da CBD (Convenção sobre Diversidade Biológica). "Sarumanismo", claro, exige explicação, mas a metáfora vale a pena. Saruman é o nome do mago renegado do romance "O Senhor dos Anéis", que começou como proponente de uma utopia tecnológica e acabou como tirano fracassado. Não que os delegados da COP-8 tenham pessoalmente o desagradável hábito sarumânico de alimentar fornalhas com árvores inteiras, mas numa coisa muitos deles são iguais: o divórcio entre palavra e ação (neste caso, mais inação do que qualquer outra coisa) que dominou o evento.
Que o diga o espetáculo triste dado pela delegada Felicity Buchanan, da Nova Zelândia, que deteve as conversas sobre o regime de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios durante 60 preciosos minutos porque não queria uma menção a "derivativos" desses recursos no texto. Detalhe: o texto estava muito longe de ser uma decisão final. Tratava-se apenas de uma recomendação para o grupo de especialistas que deve se reunir nos próximos anos para discutir a viabilidade de um certificado internacional de origem de produtos derivados da biodiversidade. Incluir
"derivativos" nesse certificado (ou seja, produtos alterados em relação ao recurso genético original) obviamente não interessa à indústria dos países desenvolvidos. Argumento neozelandês: permitir essa discussão equivaleria a transferir decisões políticas para um grupo técnico. Então tá.
Convenção sem poder
A situação é mero sintoma do problema maior que é a CBD, um amontoado de boas intenções sem coordenação interna, financiamento adequado ou, o que é mais importante, poder de fato para implementar suas decisões -isso, é claro, se elas fossem mais específicas que o pedido para reduzir de forma "significativa" a perda de biodiversidade até 2010.
Também é sintoma das dificuldades do sistema multilateral da ONU, incapaz de fazer as nações enxergarem um problema realmente global e fazer alguma coisa a respeito sem colocar seu interesse próprio de curto prazo na frente de todo o resto. Enquanto a ciência diz há pelo menos 15 anos que a Terra está entrando numa fase de extinções em massa causadas pela mão humana, os delegados acham que mais estudos são necessários. Atiram pela janela o princípio da precaução, segundo o qual ninguém precisa de todas as informações do mundo para agir contra uma catástrofe.
Dito desse jeito, parece que a culpa é só da CBD e da ONU. Não é. Também está sobre as cabeças de boa parte das ONGs que encheram o evento de Curitiba com protestos barulhentos, alimentando a velha paranóia em relação aos transgênicos (até onde se sabe, injustificada, pelo menos por enquanto) e desviando energia do essencial. Enquanto elas cerravam fileiras contra o tigre de papel das "sementes suicidas" Terminator, a farsa continuava.
Ahmed Djoghlaf, o recém-empossado secretário-geral da CBD, repetia o tempo todo que a convenção havia "voltado para casa [nasceu na Eco-92, no Rio]para ganhar vida nova". O que se viu ali, porém, foi um morto-vivo.
www.folha.com.br - 01/04/06
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