Mulheres e eucaliptos: fertilidade e aridez
Por Maria Ignez S. Paulilo (*) e Iraldo Alberto Alves Matias (**)
A destruição de um laboratório de plantas da Aracruz Celulose na madrugada do dia 08 de março por cerca de 2.000 mulheres ligadas aos movimentos de defesa dos trabalhadores do campo, em especial à Via Campesina, foi condenada unanimemente pela imprensa. Nos noticiários, em seqüência à ação das mulheres, estão sendo veiculadas notícias sobre a atuação da polícia nos morros do Rio de Janeiro. Há uma clara tentativa de passar a mensagem de que a destruição do laboratório é apenas vandalismo, como parte de uma estratégia mais ampla da mídia de criminalização dos movimentos sociais. Cabe à Universidade, para além de aceitar ou condenar os fatos sociais, refletir sobre eles. Refletir sobre o desenraizamento social e familiar dos jovens excluídos, atraídos pelo tráfico de drogas, cuja perspectiva de futuro se resume ao aqui e agora, do jeito que der, e o desenraizamento forçado das populações rurais por, entre outros fatores e outras monoculturas, o crescimento das empresas de reflorestamento. Vamos nos ater a este último acontecimento. Começamos por dizer que, em grande parte dos países pobres, 65% a 80% dos alimentos são produzidos pelas mulheres em suas pequenas explorações familiares.
Nada na ação das mulheres é simples de entender. Preferimos o uso de embalagens de papel às de plástico, por serem biodegradáveis. Mas será que precisamos desperdiçar tanto?! Principalmente nos países mais ricos, onde o apelo ao consumo demanda grande investimento em embalagens chamativas. Também o ritmo da vida cotidiana faz com que tudo o que é descartável tenha boa aceitação. Não é preciso lavar, enxugar, ter lugar para guardar. Segundo Larry Lohman, diretor da Tahoe Regional Planing Agency/USA, na América Latina, 70% do papel produzido vão para a fabricação de embalagens e lenços de papel. Nos Estados Unidos da América, o consumo de papel é de 347 quilos pessoa/ano. No Brasil, é de 38 quilos/pessoa/ano. São os países pobres que estão pagando o ônus de sustentar o consumo mundial, consumindo suas florestas nativas e sua terra agriculturável em prol das espécies exóticas. O eucalipto não é nativo (apesar de suas folhas terem sido o expectorante preferidos de nossas avós). É originário da Austrália e outras ilhas da Oceania. Há certa polêmica sobre quando foi introduzido no Brasil. A data varia de 1855 a 1868, havendo quem diga que já em 1825 havia dois exemplares plantados no Horto Botânico do Rio de Janeiro.
Quem conhece o meio rural do sul do Brasil sabe que há um convívio entre o relevo, as matas e o gado. Nas áreas de relevo acidentado, o gado pasta solto e pequenas regiões de mata são preservadas. O pouco que resta da Mata Atlântica está nos picos dos morros. Sabemos o quanto ganhou importância a discussão sobre o pasto como alimento principal dos rebanhos, depois da catástrofe que foi o advento da doença da “vaca louca”, surgida em conseqüência de rações produzidas com restos de outros animais. Sabemos também da contaminação do lençol freático em países onde o gado é estabulado. Como leite é assunto de mulher aqui no sul do país, elas falam de como é impossível a convivência entre gado e reflorestamento. Pinus e eucalipto crescem fechando os espaços, não deixando que nasça uma vegetação rasteira para alimentar os animais. Certa vez, diante de reclamações insistentes contra os eucaliptos plantados que “puxavam” muita água do solo (há um estímulo por parte das fumageiras neste sentido, por causa do uso da lenha nas estufas), perguntamos aos agricultores por que não revertiam a situação cultivando novamente a área reflorestada com alimentos ou plantas nativas. Diante da resposta, só pudemos nos penitenciar pela ignorância. O eucalipto tem uma raiz que se aprofunda no solo, que só se arranca com trator usado para o destocamento, equipamento caro e, dependendo do relevo, com possibilidades limitadas de uso.
Em palestra proferida na conferência paralela realizada em Porto Alegre (RS), ao mesmo tempo em que se desenrolava a Conferência Mundial sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural organizada pela FAO/ONU (7 a 10 de março de 2006), o ex- presidente da Emater-RS, Lino de David, disse que é preciso distinguir entre o plantio de pinus e eucalipto feito em pequena escala pelos agricultores para seu uso no dia-a-dia e a produção em larga escala feita pelas empresas multinacionais para a produção de celulose. Diz que no Rio Grande do Sul há cerca de 260 mil hectares de eucalipto, pinus e acácia já plantados, com projeção para se alcançar um milhão de hectares em dez anos. A produção de celulose exige alto investimento em capital (modelo capital intensivo): para a produção de um milhão de toneladas de celulose/ano são necessários 100 mil hectares de eucalipto e um investimento inicial de US$ 1,2 bilhão. Porém, gera poucos empregos para a população rural. De acordo com David, o reflorestamento deste tipo gera, no Espírito Santo e no Sul da Bahia, apenas um emprego para cada 185 hectares plantados. O censo de 2000 mostra que, no Uruguai, cada mil hectares de reflorestamento gera 4,5 empregos.
Um dos problemas do reflorestamento é sua grande exigência de água, tanto para o desenvolvimento das florestas de pinus e eucalipto, como para o processo de produção da celulose. Ainda segundo David, na perspectiva mais otimista, esta planta consome por hectare a mesma quantidade da água da chuva que a terra recebe. Pesquisa realizada em 2005 na Argentina mostrou que em áreas de plantio de eucalipto, 53% dos rios e córregos diminuíram de volume e 13% secaram. O ecologista Augusto Ruschi, de saudosa memória (falecido em 1986), já denunciava no documento “Desertos de Florestas” que, no Estado do Espírito Santo, onde há grandes áreas reflorestadas “Se considerarmos que na região dos eucaliptais da Aracruz Celulose e da CVRD ou Flonibra a precipitação anual chega em média a 1.400 mm/ano de chuva (o que não é suficiente para o eucalipto), a diferença necessária de mais de 2.000 mm é retirada do solo e do subsolo, tanto pela função osmótica como pela função de sucção das raízes. Retira até mesmo do lençol freático o restante da água que necessita (...) na Austrália, pátria de mais de 400 espécies de Eucalyptus, só se pode plantar, em cada região, as espécies que nela são nativas”. Como se vê, há uma política ecológica para o primeiro mundo e outra para os países pobres.
Um ponto central para a compreensão do ato contra a Aracruz, diz respeito diretamente ao porquê do estabelecimento de grandes empresas de celulose na região sul da América do Sul. Além dos 260 mil hectares ocupados no Rio Grande do Sul, o Uruguai já apresenta 700 mil hectares de eucalipto plantado; o sul do Chile, 2 milhões de hectares; e a Argentina, 500 mil hectares. David justifica o interesse nessa região com os seguintes dados: nos países frios do Norte (Estados Unidos, Canadá e Escandinávia), maiores produtores de celulose do mundo, o pinus tem um ciclo de corte de 35 anos. Nos citados países do Sul, o eucalipto tem um ciclo de 6 a 7 anos, e existe uma grande “disponibilidade” de terras. Isto significa uma capacidade de produção de matéria-prima cinco vezes maior, portanto um aumento na lucratividade. Apenas para ilustrar este cenário, Davi afirma que o faturamento da Stora Enso (empresa sueco-finlandesa de celulose) em 2005, foi de R$ 34 bilhões, o que corresponde a duas vezes o orçamento do Rio Grande do Sul, no mesmo ano.
Um dado complementar mostra que na África do Sul, com seus 1.600.000 hectares de eucalipto, consome-se duas vezes mais água com eles que com o plantio de alimentos. Vale a pena falar um pouco mais da África. No Seminário Internacional “Política para Mulheres na Reforma Agrária e no Desenvolvimento Rural”, encontro preparatório para a Conferência da FAO/ONU, perguntaram a uma representante dos países africanos se lá havia seguridade social para as mulheres, ao que ela respondeu “Nós não temos seguridade social, nós somos a seguridade social”. São as mulheres que cuidam das crianças, dos idosos e dos doentes, alimentando-os com o que plantam e com a água que conseguem a duras penas. A forte presença da AIDS nestes países agravou ainda mais a penosidade do trabalho rural feminino, porque a única medida tomada tem sido enviar os doentes de volta para o campo.
Enquanto isso a ONU adverte que 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso adequado à água potável. Seu secretário-geral, Kofi Annan, pede que todos os países “trabalhem de perto e juntos para promover o respeito dos ecossistemas naturais dos quais dependemos, e garantir que todas as pessoas tenham acesso à água pura e aos benefícios que torna possível”. Pois é! Sempre que se fala em “todos”, há um mascaramento do fato de que os países não são igualmente responsáveis pelo modelo agressor do meio ambiente. Como diz Sebastião Pinheiro , da Fundação Juquira Candiru, em seu texto “O eucalipto e a desmaterização da economia”, os países do primeiro mundo tomam conta da economia dos países periféricos, impondo políticas que afetam a vida das comunidades e do meio ambiente.
Concordando ou não com a ação das mulheres que invadiram o laboratório de plantas da Aracruz Celulose, temos que concordar que existe um grande potencial de revolta quando mulheres do terceiro mundo e, neste caso, do Cone Sul se reúnem para discutir seus problemas. A pequena produção familiar que alimenta os pobres do campo e que mais obsorve sua mão-de-obra sente, de maneira imediata, a agressão dos reflorestamentos. Os eucaliptos precisam de poucos trabalhadores especializados em árvores exóticas e não de nossas agricultoras mais que especializadas em fazer brotar alimentos dos solos pobres. Nós, porém, não perdemos por esperar. Mais cedo do que se imagina, deseja e quer, pagaremos também o preço que a natureza vai nos cobrar. O ato das mulheres não foi um ato de vandalismo, de ódio ou de revanchismo. Foi uma tentativa consciente de chamar à atenção para um grave problema ambiental. Será que estamos preparados para enfrentá-lo ou, pelo menos, admiti-lo?
Fontes:
Observações de campo feita pelos autores durante a Conferência Mundial sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (Porto Alegre, 7 a 10 de março de 2006) e reuniões que a precederam; palestra de Lino de David, ex-presidente da EMATER-RS; sites dos periódicos Ambiente Brasil e Século Diário; sites ligados à obra de Augusto Ruschi; e pesquisas prévias dos autores.
(*) É professora titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC e pesquisadora do CNPq.
(**) É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC.
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