Soberania Alimentar e Direitos Humanos
Curitiba, 16/3/2006
Enquanto a imprensa esperava em pé pela ministra Marina Silva, na frente do Expotrade, em Curitiba, atrás do centro de exposições, a sociedade civil acompanhava um debate sobre a biossegurança, contaminação genética e soberania alimentar, promovido pelo Fórum Global da Sociedade Civil (FBOMS).
Participando da atividade, a advogada Ana Flávia Rocha, da Associação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh), concedeu entrevista à revista Consciência.net.
CN: Explica para nós qual é o trabalho da Abrandh.
Ana Flávia: Desde 2002 a Associação é uma oscip que procurar operacionalizar e promover a realização do direito humano à alimentação adequada no Brasil, e em outras localidades da América Latina. Nossa entidade surgiu como resultado da consolidação de um grupo de trabalho brasileiro sobre o tema que, em conjunto com a World Alliance for Nutrition and Human Rights (WANAHR), a FIAN e o Instituto Jacques Maritain, que lutou pela inclusão desse direito como um dos eixos políticos na Cúpula Mundial da Alimentação, que foi realizada em Roma (1996).
CN: Qual o principal trabalho da entidade?
Ana Flávia: Atualmente atuamos num projeto de cooperação em conjunto com a FAO e o Governo da Alemanha, que procura apoiar o Brasil no monitoramento relacionado ao direito à alimentação. Também procuramos criar mecanismos de capacitação, educação e monitoramento da implementação desse direito.
CN: Qual é a situação do país hoje?
Ana Flávia: Não temos números exatos da fome no país, hoje. O que sabemos é que é grande o número de pessoas que passam extrema necessidade, quando a função do governo é favorecer o acesso das pessoas à alimentação. Isso não é um favor, e não deve ser encarado dessa forma. Se pensarmos que o governo está fazendo um favor, dando comida, criando programas, vamos sempre estar suscetíveis a esse poder invisível sobre nós.
CN: Ou seja: o poder da fome versus o poder político.
Ana Flávia: Não se pode medir o que é pior. É doloroso constatar que seres humanos, num país tão rico como o nosso, ainda passam fome. Mas é triste também saber que esse direito que nos garante a Constituição é colocado para nós como se fosse um favor, um ato de piedade.
CN: Quando você fala em programas do governo contra a fome, penso que isso não pode ser encarado como algo que venha a cumprir esse direito que você coloca, porque os programas são criados para alguns grupos de pessoas, excluindo outras. Então não pode ser encarado como um cumprimento do direito, não?
Ana Flávia: Isso mesmo, não é um cumprimento. É uma das formas de minimizar a situação. Não pode ser encarado como um direito universal, que serve a todos, pois é, de alguma maneira, exclusivo. Mas não podemos deixar de perceber que sem esses programas estaríamos numa realidade muito pior do que já estamos.
CN: Ruim com o Fome Zero, pior sem ele?
Ana Flávia: Mais ou menos por esse caminho. O que é interessante perceber é que, nesses últimos anos, tivemos um avanço com relação ao direito e à soberania alimentar. Esse nosso direito à alimentação adequada já é reconhecido em vários documentos internacionais. No documento de Direitos Humanos da ONU temos um comentário geral sobre isso e em uma parte específica, diz que os Estados "reconhecem o direito de todos de usufruir de um padrão de vida adequado para si mesmo e sua família, incluindo moradia, vestuário e alimentação adequados, e à melhoria contínua das condições de vida ".
CN: E no nosso país, como está a garantia desse direito?
Ana Flávia: Como te disse estamos avançando, a passos lentos, mais estamos. No ano passado se começou a discussão pública de um projeto de lei, que se chama Projeto de Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que está em discussão no Congresso. Num dos seus artigos consta que "a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis". É isso que queremos que seja cumprido, de maneira ampla, pois sabemos como militantes dos Direitos Humanos, que no nosso país o fantasma da fome ainda atinge, em maior grau, aos negros, mulheres, indígenas e às crianças. Precisamos reverter isso, garantindo os direitos básicos, essenciais.
CN: E como os políticos estão reagindo a esse projeto?
Ana Flávia: A bancada ruralista ainda não se manifestou, não fez nenhum barulho sobre o tema. Tem um deputado federal que está acompanhando toda a discussão e a cada etapa ele se comunica com as organizações civis para discutir sobre o andamento. Até onde sei, apenas um conceito que estava no projeto, que foi colocado pela Via Campesina, foi tirado.
CN: E você acha que foi só porque a Via Campesina colocou ou porque era muito impactante?
Ana Flávia: Veja, não posso te posicionar a respeito, com clareza. O que sei é que eles alegaram que aquele conceito não era usual no país, por isso não sabiam se funcionaria, e preferiram adaptar, mudar.
CN: Há esperança de uma aprovação ainda neste ano?
Ana Flávia: Muita, muita esperança. Queremos que esse projeto de lei seja aprovado antes da próxima eleição. E que ele seja aplicado, claro.
CN: Como a Soberania Alimentar se enquadra na MOP3?
Ana Flávia: Olha, tudo que tem relação com alguma área da vida humana, é importante. Nesse caso é preciso estarmos atentos às decisões aqui tomadas e vermos quais os impactos que elas causarão na nossa vida. Um exemplo, a não identificação da transgenia, toda essa discussão, as questões econômicas, as políticas, ou seja, de alguma forma a decisão das pessoas que estão lá dentro daquelas salas vão influenciar na nossa vida. Se for de ordem econômica, vão influenciar na nossa alimentação, pois sem dinheiro, hoje, não temos como comprar comida. E se for a aprovação da não identificação clara, corremos o risco de não saber, nos próximos anos, o que vamos comer.
CN: Há uma distorção entre o que acontece lá dentro e as discussões aqui fora. Como você avalia esse trabalho que a FBOMS promove aqui, fora do âmbito oficial?
Ana Flávia: Acho que a participação organização civil é primordial e fundamental. Não sei até que ponto nossa participação é vista de maneira clara, mas precisamos nos posicionar, estar atentos e manifestar nossos pedidos e direitos a qualquer decisão que seja tomada e, que vá prejudicar os seres humanos, e que fira os nossos direitos. Não há como discutir direitos e deveres sem a participação civil.
Entrevista exclusiva por Paula Batista para Consciência.net.
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