Decreto presidencial reconhece a importância dos remédios populares e autoriza médicos a prescrever ervas
Da Página 20
Rio Branco, 25/01/2007
Os chazinhos e lambedores da vovó que têm livrado gerações dos mal-estares estomacais e problemas respiratórios finalmente começam a ser respeitados e logo, logo poderão até fazer parte da lista de receitas médicas do Sistema Único de Saúde (SUS).
O decreto número 5.813 assinado pelo presidente Lula, que assim criou a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápticos, é o reconhecimento oficial de que os remedinhos caseiros de fato funcionam, mas isso ainda vai gerar muita polêmica entre os que defendem a cultura popular e os que querem garantir o mercado dominado pelos grandes laboratórios, até porque saúde é dinheiro.
Tudo começou com a realização de um levantamento dos remédios tradicionais mais usados pela medicina popular brasileira e quais seriam os males que se acreditava curarem. A partir daí, foram construídas tabelas que passaram pelo crivo da ciência para que cumprissem a exigência de três pontos fundamentais que são a qualidade da matéria-prima, a eficácia no tratamento e a segurança para o paciente.
Saúde que vem da floresta
Especializada na química de produtos naturais, a pesquisadora Ana Cláudia Amaral está em Rio Branco a serviço da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), que em parceria coma Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac) e a Universidade Federal do Acre (Ufac) está ajudando a organizar dois laboratórios que já estão realizando a pesquisa de fitoterápticos e fitocosméticos com plantas e ervas típicos das florestas acreanas. Ela foi uma das pesquisadoras que ajudou a elaborar o projeto do decreto das Políticas Públicas dos Fitoterápticos assinado pelo presidente e que vai entrar em vigor neste mês de fevereiro.
"Estes laboratórios vão revolucionar as pesquisas já realizadas aqui no Estado permitindo a realização de descobertas que a gente ainda nem pode imaginar. Isso porque o Brasil, e especialmente a Amazônia, tem uma biodiversidade tão rica que nós ainda não conseguimos estudar nem 2% do que existe, por isso é que todos temos tanta preocupação com a preservação da floresta", explicou a cientista.
Segundo ela, o laboratório que acaba de ser construído na Funtac com recursos de emenda parlamentar do senador Sibá Machado vai permitir que os pesquisadores acreanos possam realizar toda a análise de perfil das substâncias extraídas das florestas acreanas. Isso inclui as propriedades físico-químicas e substâncias moleculares dos extratos.
Na lista de 12 plantas apresentadas como prioritárias para o receituário médico inicial a ser liberado pelo SUS, consta, dentre todas as plantas medicinais da Amazônia, apenas a andiroba, fato que vem causando revolta por parte dos defensores do uso dos remédios vegetais na medicina tradicional amazônica.
Para alguns críticos do decreto, a lista restrita contendo plantas que nem podem ser cultivadas nas regiões norte e nordeste acabariam favorecendo os interesses dos grandes laboratórios e empresas produtoras do sul e sudeste brasileiro, ao mesmo tempo em que não leva em consideração a diversidade de climas, ambientes e culturas deste país continente.
"Nenhum dos integrantes da equipe estava ligada a qualquer laboratório e a idéia que moveu a equipe, desde o princípio, foi a de que os medicamentos da medicina popular tradicional realmente estavam dando resultado, mas que para serem receitados precisam atender alguns requisitos básicos exigidos pela ciência. O que nos levou a elaborar três listas onde alguns atendem os três requisitos da qualidade, eficácia e segurança, outros apenas parte deles e a maioria precisa ser melhor estudada", afirma Cláudia.
Ela esclareceu que nas demais listas existe uma série de plantas da Amazônia, dentre elas, pelo menos dez do Acre, mas que apesar do uso consagrado pela ´população no tratamento de seus males, ainda não tem seus efeitos benéficos e, possível toxidade devidamente conferido pela ciência. "A Agência Nacional de Vigilância Sanitária são muito rigorosos, mas isso é uma necessidade para garantir a própria segurança de quem for usar esses medicamentos que hoje já são usados na medicina popular".
Saúde também é cultura
Mestre em antropologia atuando no Departamento de Ciências da Saúde da Ufac, o professor Estanislau Paulo Klein é um dos mais respeitados instrutores de medicina popular do Acre e dedica boa parte de seu tempo a orientar os trabalhos que são realizados pelas Pastorais da Saúde pertencentes à Igreja Católica e que atuam junto à população da periferia da capital.
Referindo-se ao decreto assinado pelo presidente Lula, ele declarou: "Esse é um bom sinal porque abre campo para que o Sistema Único de Saúde permita que seus médicos possam receitar ervas tradicionalmente usadas para curar doenças. O uso dessas plantas pela população é milenar e é reconhecido em boa parte do mundo, mas a ciência ocidental traz em si a ortodoxia da inquisição impondo-se com autoritarismo. Por isso, a maioria dos médicos e outros profissionais em saúde não aceita que um índio, agricultor ou seringueiro dominem saberes que eles não têm".
Mas um terceiro fator ainda mais forte nestes tempos de globalização, segundo Paulo Klein é justamente o interesse dos grandes laboratórios. "Saúde é dinheiro! A alopatia, com seus remédios químicos, é cara e a fitoterapia, com suas ervas, produz remédios eficientes a baixo custo, por isso, ainda que haja uma liberação oficial, é tão necessário limitar ao máximo a lista de ervas permitidas no receituário médico, dando-se preferência àquelas que mais interessam às grandes empresas em prejuízo da população", denuncia.
Ele cita como exemplo o fato de que só a andiroba tenha sido incluída na lista primordial das políticas públicas dos fitoterápticos, enquanto que plantas como a unha de gato, tão abundantes no Acre e em toda a Amazônia é explorada às centenas de toneladas para que a grande indústria extraia seus princípios ativos para transformar em remédios que vão combater as dores musculares e reumáticas.
"A carapaúba branca cura mal de mulher e problemas de próstata, o sabugueiro az baixar a febre e desintoxica o corpo, o cumaruzinho tira catarro e melhora o sistema respiratório, o jatobá também faz isso e muito mais. São nossas plantas e ervas que a medicina popular consagrou embora a ciência ainda não reconheça seu valor".
Lembrou que além das ervas, a medicina tradicional acreana usa produtos animais, assim, torrando e moendo o dente do porquinho do mato as índias e ribeirinhas curam a pneumonia de seus filhos. Já o óleo de suri, extraído das larvas do besouro que bota seus ovos no tronco do patauá é um medicamento consagrado contra os problemas respiratórios nas florestas da Bolívia e Peru de onde também vem o sangue de grado que dizem curar até o câncer.
Pastoral da Saúde
A dona de casa Raimunda Silva de Assis é uma das colaboradoras da Pastoral da Saúde que tem seu núcleo na comunidade São João Batista no bairro Plácido de Castro onde com oito companheiras de trabalho cultivam em seus quintais mais de 40 tipos de ervas medicinais. Com elas preparam coletivamente extratos, tinturas, pomadas, lambedores e ungüentos para o uso da comunidade.
Parte das mudas são vendidas todas as sextas-feiras na feira do Tucumã, sábado na feira da Vila Ivonete e domingo na da Rodoviária da Cidade Nova. "A ente não vende remédios porque não temos autorização para isso, mas ensinamos outras donas de casa a prepara-los e vendemos as mudas porque além delas poderem cultivar sua farmácia no quintal, isso ainda ajuda a preservar as plantas e com ela esta cultura que recebemos dos mais antigos".
Explicou que além das ervas cultivadas no quintal, restos de mata ainda existentes na cidade funcionam como verdadeiras farmácias naturais. "Na semana passada mesmo, entramos na mata que fica aqui atrás do nosso bairro, ela é muito rica, então uma amiga que veio do Tucumã para nos ajudar, identificou uma grande quantidade de João Brandim, que eu ainda não conhecia por aqui. Ele é um ótimo remédio para tratar problemas de próstata".
Dentre as ervas mais utilizadas pela comunidade estão a arruda para combater dores de cabeça, a pluma para resolver empachamentos e mal estar depois de refeições, a catinga de mulata resolvendo dores de ouvido. "Nas beiras de rio, durante o verão, a gente encontra bastante dipirona, macela e assa-peixe que fazem baixar a febre. Já o cumaruzinho é um santo remédio contra a gripe".
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