A voz dissonante de Marijane Lisboa
Gazeta do Povo
Intelectual transita entre movimentos sociais e altas esferas ligadas à biossegurança
Na segunda-feira passada, primeiro dia de trabalhos da 3.ª Reunião das Partes Signatárias do Protocolo de Cartagena, a MOP-3, um grupo de 700 manifestantes da Via Campesina rompeu com o protocolo e protestou contra o comércio de sementes transgênicas. Virou manchete. Em meio à população ruidosa, destacava-se a figura da socióloga carioca Marijane Lisboa.
Marijane estava no endereço certo – a democrática tenda branca em que acontece o Fórum Global da Sociedade Civil, na área externa do Expo Trade. A mudança de lugar social, como se dizia, começou em 1992, quando a pesquisadora decidiu dividir a carreira docente, na PUC de São Paulo, na qual leciona nos cursos de Ciências Sociais e Relações Internacionais, com a de assessora do Greenpeace. Atualmente, atua também como consultora da Associação de Agricultura Orgânica.
O ponto de vista de Marijane Lisboa não poderia ser mais privilegiado. Na semana que passou, ela teve trânsito entre sem-terra, mulheres camponesas e enviados de 132 países presentes na MOP-3. Em entrevista à Gazeta do Povo, a intelectual falou dos impasses que fizeram da reunião da biossegurança algo mais do que um encontro diplomático, sem açúcar ou sem sal. Populares protestaram, cientistas se alinharam com a indústria de biotecnologia, o governo brasileiro negociou tempo para a identificação de sementes, vizinhos latino-americanos subiram no palanque. Em meio a essa agenda política, dois modelos de mundo ficaram a nervos expostos. Marijane sabe do que se trata. Confira trechos da entrevista da socióloga à Gazeta do Povo.
O Brasil teve uma participação satisfatória na MOP-3?
O bom senso indicava que o governo não podia mais bloquear as negociações em torno do Protocolo de Cartagena. Mas havia dúvidas, por causa da enorme pressão das empresas de biotecnologia junto aos ministérios da Agricultura e da Ciência e Tecnologia. Foi uma boa surpresa o país ter admitido que é preciso definir o “contém” e o “não contém”. O que preocupa, ainda, é o prazo de quatro anos pedido para implantar a identificação de transgênicos. Não há justificativa para esperar, pois o protocolo foi assinado em 2000.
Houve má-fé?
Na época da assinatura do Protocolo de Cartagena, alguns países manifestaram que a cadeia produtiva não estava preparada para o controle dos transgênicos. Os Estados Unidos, Canadá e a Argentina eram os grandes exportadores e se decidiu provisoriamente pelo “pode conter”. Mas já se passaram seis anos. E ainda temos muitas dúvidas.
Quais?
Ninguém entendeu como serão definidas as cadeias produtivas dos países que já fazem segregação de organismos vivos modificados (OVMs). Ou se é possível implantar a identificação imediatamente. A produção orgânica, por exemplo, já traz o “não contém”. Exportamos alguns produtos para países da Europa, Japão, China, com segregação. Ou seja, temos condições de fazer imediatamente com que os carregamentos que saem do Brasil recebam agora o “contém” ou “não contém”? Há particularidades de cada setor que o protocolo não contempla, mas a regra internacional tem de ser uma só para todos.
Como a senhora avalia a posição dos que defenderam com tanta garra o “pode conter”?
O argumento é que encareceria enormemente a exportação. Mas não é verdade. Um dos testes custa US$ 0,4 centavos por tonelada. Além disso, grande parte da soja brasileira já deveria estar identificada. Quando o agricultor compra uma semente transgênica há uma nota fiscal em que tudo está declarado. A rastreabilidade é um fato. Dá para dizer que nem todos os interesses foram apresentados.
Por exemplo?
O medo de dizer que se está exportando transgênico. Há rejeição crescente por esses produtos no mercado internacional. E muitos países não têm capacidade técnica para fazer testes nos portos. Sem obrigação de o exportador dizer que se trata de transgênico tudo fica mais fácil. O mais justo é que o teste seja feito por quem ganha com essas cargas.
A senhora diria que o que se esconde por trás dos transgênicos é mais assustador do que o próprio transgênico?
Eu diria que estamos enfrentando o avanço de setores industriais sobre uma área que não era propriedade de ninguém, a natureza. Mas não se trata da natureza entendida como terra, mas como estrutura genética. Ao descobrir como um organismo funciona, seu DNA, registra-se o que já existe como se fosse uma invenção. A estrutura de patentes do Direito, da propriedade intelectual, foi trazida para o campo da natureza. Isso explica todo o esforço para não descrever claramente o que está sendo comercializado. As indústrias que fizeram ligeiras transformações em plantas e as patentearam querem espalhar seu produto pelo mundo e depois cobrar por isso. É apavorante essa tentativa de se apossar da natureza e nos tornar reféns do que comemos ou vestimos.
A biotecnologia é apontada como uma saída para a escassez de alimentos. O argumento lhe convence?
Não. A FAO (braço da ONU para agricultura e comida) tem estudos mostrando que se produz mais do que o suficiente para alimentar a população do globo. Do ponto de vista estatístico não há incapacidade produtiva. O que causa da fome é a má distribuição da renda e da terra, justo os dois meios pelos quais se pode chegar à comida. Ou se tem dinheiro para poder comprar ou terra para plantar. Se essa explicação não bastar, é só olhar para a realidade. A soja não é alimento básico das populações. Assim como o milho, é destinada a ração. A engenharia genética está voltada para animais, porque isso dá mais dinheiro, e não para alimentar a população carente. Além disso, por ser cara, é uma cultura longe de ser praticada pelos camponeses do mundo. Usar um bilhão de pessoas que passam fome para justificar os lucros das grandes empresas é escandaloso.
Por Priscila Forone
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home