Questão de cultura
Questão de cultura
A soja, que avança sobre a floresta e concentra terras, caminha para dominar a matriz do biodiesel nacional
ENVIADO ESPECIAL A PIRACICABA
A tendência de a soja virar o grão hegemônico do biodiesel brasileiro pode fazer o projeto nacional dos combustíveis sustentáveis sair pela culatra.
Esse percurso desconsidera as aptidões geográficas do país. O mais natural é que um mosaico de culturas sirva de base para a produção de biomassa.
"Qualquer afirmação hoje [sobre qual o principal grão a ser usado na produção] é um pouco precipitada. Temos um mapa onde é possível enxergar as vantagens comparativas e competitivas de uma cultura sobre a outra", afirma Sílvio Crestana, da Embrapa.
O dendê, já plantado na Amazônia, será uma opção para o Norte. A soja, que ainda tem de vencer alguns problemas tecnológicos, terá força no Centro-Oeste e no Sudeste, juntamente com o girassol e o amendoim.
A empresa Brasil Ecodiesel, uma das pioneiras do programa, que é apoiada pelo governo, já tem o óleo de soja como sua matéria-prima principal, apesar de ter nascido com o objetivo de explorar a mamona.
O domínio da soja, como revelou à Folha em novembro, já ocorre no semi-árido do Piauí, onde opera a Brasil Ecodiesel. Foi lá, na cidade de Floriano, que o presidente Lula esteve para inaugurar a usina da empresa, em 2005.
A mamona, segundo o projeto original, daria emprego e renda para os colonos da região. Hoje, os agricultores familiares colhem 70% menos do que em 2005.
Desmatar é mais barato
Os empresários do agronegócio, a maioria instalados no Centro-Oeste, esperam fornecer 90% da matéria-prima para o biodiesel brasileiro. A estimativa do governo é que esse grão não passe dos 60%.
Os 30% de diferença podem ser determinantes para que um dos grandes temores do mercado internacional se confirme ou não nos próximos anos.
A dúvida é se a soja vai ou não brigar ainda mais com as florestas e o cerrado, como tem ocorrido nos últimos anos.
A questão ambiental, admite Crestana, tem sido um grande quebra-cabeça. "O grande jogo é aproveitar os 50 milhões de hectares de pastagens pouco produtivas que temos."
Segundo o presidente da Embrapa, a conta é a seguinte: "Nos próximos 30 anos será necessária a produção de 100 bilhões de litros de biodiesel. E, para isso, vamos precisar de 40 milhões de hectares."
Ele mesmo indica o obstáculo que precisa ser transposto. "A questão pega no investimento. Para recuperar 20 milhões de hectares pouco produtivos são necessários R$ 40 bilhões. Ainda está mais barato derrubar floresta."
Impactos regionais
Ao mesmo tempo em que olha para as questões nacionais e internacionais do projeto do biodiesel brasileiro, o Pólo Nacional de Biocombustíveis está participando de um projeto em escala regional, em pequenas e médias propriedades.
"O biodiesel não vai resolver todos os problemas do mundo. Mas também não podemos ficar de fora dele", afirma Arnaldo Bortoletto, diretor da Coplacana (Cooperativa dos Plantadores de Cana de Açúcar do Estado de São Paulo). O projeto entre o pólo e os produtores de Piracicaba já está em andamento. A idéia é aproveitar parte da terra para produzir biodiesel.
"A matriz será a soja, por causa do custo-benefício" admite Bortoletto. A oleaginosa vai conviver com a cana-de-açúcar, que continua sendo o produto principal dos 3.500 cooperados na macrorregião de Piracicaba.
"Nosso produto principal é a cana. O biodiesel é apenas um projeto complementar", avisa o dirigente do grupo. Até o fim do ano, a esmagadora já deve entrar em funcionamento.
O farelo da soja, que será produzido em grande quantidade por causa da baixa quantidade de óleo presente nos grãos, será usado em uma fábrica de ração.
A expectativa é que o biodiesel possa ser trocado, no futuro, com os fornecedores dos plantadores de cana. As instalações poderão produzir até 15 mil litros de óleo ao dia. "Uma das nossas preocupações também é com a qualidade do produto", afirma Bertolotto.
Tanto a soja como a cana-de-açúcar, em termos energéticos, poderão encontrar grandes mercados no cenário internacional nos próximos anos. Mesmo considerando que a UE fez sua opção pelo biodiesel e não pelo etanol -os europeus temem a dependência de uma única commodity, seja ela o petróleo hoje ou a cana amanhã.
"O álcool de cana-de-açúcar é biocombustível de maior produtividade no mundo (6.000 litros por hectare por ano) e de melhor balanço energético (8 a 9 joules de energia renovável por joule de energia fóssil gasta), afirma Luís Augusto Cortez, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Estratégico da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
O grupo do pesquisador já fez um grande estudo sobre o etanol no Brasil, que foi apresentado ao CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos), ligado ao MCT (Ministério de Ciência e Tecnologia).
Áreas protegidas
A pesquisa monta um cenário otimista para a cana-de-açúcar no Brasil. Até 2025, com um investimento pesado anual, de cerca de R$ 10 bilhões, é possível chegar a uma produção de 104 bilhões de litros por ano, segundo as estimativas do grupo de Campinas. Hoje, a produção brasileira é de 3,6 bilhões de litros aproximadamente.
De acordo com Cortez, isso pode virar realidade por meio dos chamados arranjos produtivos. Seria possível construir 615 deles no Brasil nessas próximas quase duas décadas.
Cada uma dessas unidades de produção de cana ocuparia uma área de 420 mil hectares e produziria 2,55 bilhões de litros de álcool por ano.
"E toda a questão ambiental já está prevista. Haverá a manutenção das áreas protegidas", explica o professor. Talvez, segundo Cortez, a expansão ocorra em detrimento das zonas de soja. "Outra opção é usarmos as áreas já desmatadas que não estão sendo mais totalmente aproveitadas", avisa.
Ainda dentro dessas projeções, todo esse álcool, lá em 2025, renderia US$ 31 bilhões em exportação para o Brasil e um aumento no PIB (Produto Interno Bruto) da ordem R$ 153 bilhões. "O impacto no emprego também será grande."
Para o consultor em energia Roberto Kishinami, todos os dilemas do projeto do biodiesel brasileiro passam por um único lugar. "No geral, 99% dos problemas estão na falta de coordenação. Temos de fazer as escolhas dentro das nossas possibilidades. Temos de ter foco e não necessariamente buscar a solução apenas financeira. Devemos olhar para as várias tecnologias e enxergar que umas são mais concentradoras [de terra e renda] que outras".
Na visão do consultor, um ex-diretor do Greenpeace Brasil que já fez alguns trabalhos na África, em países produtores de cana-de-açúcar, a educação é outro ponto central. "Sem isso, o risco aqui é criar um novo grupo de excluídos." (EG)
Fonte: www.folha.com.br data: 21/01/07
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